Um novo medicamento experimental para a doença de Alzheimer chamado lecanemab, desenvolvido pela farmacêutica japonesa Eisai e pela americana Biogen, proporcionou uma redução inédita de 27% no declínio cognitivo da doença. Embora o impacto ainda seja modesto, apenas na fase inicial do quadro, e o remédio tenha provocado efeitos colaterais significativos em parte dos participantes, cientistas consideram os resultados um ponto de virada no tratamento do diagnóstico.
Os dados dos testes clínicos de fase 3, última etapa dos estudos, foram apresentados nesta terça-feira durante apresentação na Conferência de Ensaios Clínicos na Doença de Alzheimer (CTAD), evento que ocorre nos Estados Unidos, com a publicação simultânea do trabalho na revista científica New England Journal of Medicine.
— Havia uma grande expectativa em relação à publicação desses resultados, nós vínhamos tendo experiências negativas com medicamentos do tipo. Mas o que se viu é que o grupo tratado com o remédio teve uma progressão da doença significativamente mais lenta que aqueles que receberam o placebo. Nós recebemos isso como uma boa notícia, foi um estudo muito comemorado. Está longe de ser a ‘bala de prata’, isso não existe ainda, mas é uma droga que de fato modifica a progressão da doença — diz o professor da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) Paulo Caramelli, coordenador do conselho consultivo da Sociedade Internacional para o Avanço da Pesquisa e Tratamento da Doença de Alzheimer (ISTAART).
No estudo, 1.795 participantes em fase inicial da doença, recrutados em 235 centros de pesquisa na América do Norte, Europa e Ásia, foram divididos em dois grupos, em que parte recebeu o novo remédio, e os demais, placebo. A dosagem do medicamento foi de 10 mg por kg, a cada duas semanas, de forma injetável. Eles avaliaram o impacto do tratamento após um período de 18 meses.
O lecanemab é um anticorpo monoclonal que elimina as placas da proteína beta-amiloide formadas no cérebro. O acúmulo da substância é compreendido hoje como uma das causas conhecidas do Alzheimer. As tomografias comprovaram o potencial, mostrando uma redução do excesso da substância no órgão a partir de três meses do início do tratamento.
No entanto, ainda era um ponto de debate entre os cientistas até que ponto essa redução é eficaz em retardar os sintomas da doença, com outros remédios de atuação semelhante fracassando nos estudos. Porém, entre os voluntários que receberam o lecanemab, foi observada uma redução inédita no declínio cognitivo do Alzheimer de 27%.
— É a primeira medicação que de fato teve um resultado positivo e trouxe consistência dos dados. Teve um desempenho muito bom em retirar as proteínas beta-amiloide e um resultado clínico também positivo, embora modesto. O grande desafio agora é saber se esse resultado se mantém a longo prazo. Mas certamente vai ser um divisor de águas nesse momento em que estamos vendo novas formas de tratamento — avalia o neurologista do Grupo de Neurologia Cognitiva e do Comportamento do Hospital das Clínicas da Universidade de São Paulo (USP) Adalberto Studart Neto, membro da Academia Brasileira de Neurologia (ABN).
Há, no entanto, quem avalia que o benefício clínico não chegou a ser tão relevante assim. Para Jerusa Smid, secretária-geral da ABN e também neurologista do grupo da USP, embora o lecanemab de fato tenha sido bem sucedido em eliminar as placas de proteína do cérebro, o efeito na cognição não foi tão significativo. Ela reconhece que a pontuação utilizada para avaliar o desempenho cognitivo tenha mostrado uma diferença entre os grupos, porém aponta que no cenário geral não seria uma variação considerável.
— Talvez no futuro isso possa ser mais significativo. Apesar de existir uma diferença numérica, na prática clínica não é expressiva. Porque é uma variação pequena, de 0,45 pontos, em uma escala muito grande, que vai de 0 a 18. Então a relevância acaba sendo pouca. Eles mostram a redução da beta-amiloide, isso nos dá esperança, mas não sabemos de fato se esse é o mecanismo mais relevante no processo — diz a especialista.
Outro ponto de ressalva são os efeitos colaterais que acompanham a medicação. No geral, cerca de 12,6% dos participantes tiveram anormalidades relacionadas à beta-amiloide no cérebro que causam edemas ou sangramentos – e foram afastados do estudo. Houve ainda dois óbitos, incidência semelhante à dos que receberam placebo, mas os laboratórios afirmam que os eventos não foram relacionados ao remédio.
Aprovação nos EUA
Nos Estados Unidos, em julho deste ano, a Food and Drug Administration (FDA), agência reguladora americana, aceitou um pedido da Eisai para incluir o lecanemab em um tipo de análise para aprovação acelerada, com status de prioridade. A deliberação sobre um possível aval está marcada inicialmente para o próximo dia 6 de janeiro.
Em março deste ano, o laboratório também deu início ao processo de submissão dos dados ao órgão responsável no Japão, ainda sem previsão para análise. Segundo a farmacêutica, o objetivo é discutir os resultados também com a agência europeia, e completar os pedidos de aprovação nos três locais até o fim de março do ano que vem. Ainda não há estimativa para o Brasil.
— É importante deixar claro que o medicamento é estudado para pessoas com quadros muito leves da doença, então infelizmente não se aplica para pessoas com doenças mais avançadas. E tem que ter uma certa paciência, porque o processo regulatório demora, não sabemos qual será o preço. É animador, mas para chegar ao paciente ainda vai levar um tempo — pontua Studart Neto.
Se aprovado nos EUA, será o segundo remédio a receber um aval para a doença no país em pouco mais de um ano, depois de um longo período de quase duas décadas em que não houve novos medicamentos para o problema, que afeta mais de 30 milhões de pessoas no mundo em ritmo crescente, segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS).
No entanto, o sinal verde para o aducanumab no ano passado, fármaco também desenvolvido pela Biogen, foi controverso e restrito ao país norte-americano. Outras agências, como a europeia, rejeitaram o pedido de uso do medicamento. Isso porque os estudos clínicos não demostraram de forma clara um benefício do remédio, embora o mecanismo de ação seja semelhante ao lecanemab.
Na época, o laboratório interrompeu a fase 3 dos testes após dois ensaios mostrarem resultados diferentes: um com um leve benefício, e outro não indicando eficácia do medicamento. Porém, a FDA analisou dados parciais dos estudos e decidiu conceder o aval com a condição que mais testes da chamada fase 4, quando o remédio é acompanhado após a aprovação, fossem conduzidos. Ainda assim, devido ao alto custo e alguns problemas de segurança, ele é pouco utilizado nos EUA.
A droga também é um anticorpo monoclonal que limpa as placas de beta-amiloide do cérebro para combater a doença. Mas, existem diferenças entre elas, como as dosagens. Enquanto o aducanumab é injetado mensalmente, o lecanemab é a cada duas semanas.
— Além disso, todas essas drogas têm alguma diferença em relação à fase da proteína que elas atacam. A beta-amiloide passa por um processo em que vai se desenvolvendo e se juntando em diferentes estágios até formar as placas. E nenhum desses anticorpos é idêntico ao outro, eles têm preferência por momentos diferentes da evolução da proteína— acrescenta Caramelli.
Pesquisa sobre o Alzheimer tem sido alvo de controvérsias
Os dados em relação ao aducanumab reforçaram um questionamento na comunidade científica em relação ao papel das placas de beta-amiloide no Alzheimer. A dúvida ganhou fôlego depois que uma investigação da revista científica Science, publicada neste ano, revelou indícios de fraude e manipulação em imagens utilizadas em um estudo da Nature, em 2006, que contribuiu para a consolidação da teoria da cascata amiloide.
No entanto, a boa performance do lecanemab foi apontada pelos cientistas como um argumento para corroborar o papel da proteína na doença. Além disso, há outros medicamentos em desenvolvimento que são direcionados para outros mecanismos conhecidos do Alzheimer, como o acúmulo de um outro peptídeo chamada tau.
— O resultado do lecanemab coloca de novo a amiloide no centro do tabuleiro. Mas o que está cada vez mais claro é que isso não é uma cura. Muito provavelmente os tratamentos no futuro precisarão incluir uma combinação de drogas, que englobem mais mecanismos da doença. Por exemplo, uma como o lecanemab junto a outra em desenvolvimento para a proteína tau — pontua o coordenador da ISTAART, Paulo Caramelli.
Jerusa também acredita que uma solução pode envolver terapias combinadas, e destaca que há uma expectativa de que os medicamentos para eliminar a tau apresentem um desempenho melhor em melhorar a parte clínica do paciente.
— Em linhas gerais, nós sabemos que o depósito da beta-amiloide acontece no cérebro todo, sem distinção, mas o acúmulo da tau ocorre em regiões mais ligadas aos sintomas, como a associada à memória — diz a neurologista.