Aos 51 anos, Maria de Fátima está ansiosa: depois de ter sido negado a ela o direito à educação – pelo padrasto, pelo marido, pela patroa –, a doméstica, enfim, vai concluir o terceiro ano do ensino médio. O baiano Jonas Souto de Queiroz, 39, se mira nesse exemplo para vencer batalhas diárias e, mesmo dormindo na rua, há um ano tem se mantido frequente em sala de aula. Também sem moradia, o paulista Daniel Alves da Silva, 32, vê nos estudos a chance de engordar seu currículo e, quem sabe, mudar de vida.

Alunos da EJA – Educação para Jovens e Adultos, cada um deles descobriu, em sala de aula, horizontes que vão muito além do conhecimento em si, mesmo que este seja o fio condutor de todo processo. São histórias de pessoas que fizeram as pazes com a própria autoestima, que começaram a relatar uma inédita sensação de integração e pertencimento à sociedade e que passaram a compreender direitos, que ao longo da vida sempre lhes foram negados. 

E não é só: a alfabetização, ainda que tardia, pode trazer benefícios para a capacidade cognitiva e pode contribuir para a saúde cerebral das pessoas – hipótese que vem sendo pesquisada de Elisa França, doutoranda do Programa de Pós-graduação Interdisciplinar em Neurociências da UFMG.

A médica neurologista lembra que, em outro estudo, avaliou dois grupos distintos: em um, pessoas idosas não alfabetizadas, no outro, de mesma faixa etária, aqueles que tinham que tinham quatro anos de escolaridade. Os exames de imagem demonstraram que o segundo agrupamento possuía conexões cerebrais mais íntegras. Na empreitada de agora, ela vai avaliar os efeitos da alfabetização para adultos e idosos sobre as atividades cerebrais.

“Comecei o projeto a partir da evidência de que o baixo nível educacional é fator de risco para a demência (síndrome que conjuga a perda da autonomia à das capacidades cognitivas, como memória e linguagem)”, explica a estudiosa, que acompanha 50 voluntários – entre 23 e 80 anos – que participam de sua pesquisa a fim de dimensionar os efeitos encefálicos da escolarização.

Método. O grupo de alunos da EJA que participa da pesquisa passou por avaliação de memória e sessão de ressonância magnética. As avaliações voltarão a acontecer daqui a um ano. Assim, a Elisa poderá mensurar se o estímulo escolar foi capaz de ampliar as capacidades cognitivas e as conexões cerebrais. “Vamos concluir se a hipótese está correta em 2020”, adianta Elisa.

Com o envelhecimento da população de todo o globo terrestre, vale dizer, a demência passou a ser categorizada como uma prioridade de saúde pública pela Organização Mundial da Saúde (OMS) – afetando cerca de 50 milhões de pessoas, e com expectativa que os índices aumentem até cinco vezes em países de baixa ou média renda e dobre nos países ricos até 2050. 

Caso o experimento encabeçado por Elisa indique uma evidência do potencial da educação para uma provável melhoria da saúde mental, “teremos chegado a uma intervenção relativamente barata para esse problema”, defende ela.

Coordenador Nacional do Departamento Científico de Neurologia Cognitiva e do Envelhecimento, Leonardo Cruz de Souza pontua que o quadro tem várias causas, sendo a principal delas a Doença de Alzheimer, responsável por entre 50% e 60% dos casos de demência. Mas, mesmo para esse caso, já foi possível constatar que pessoas com mais alta escolaridade tendem a ter a doença mais tarde. 

A explicação para o fenômeno é a chamada reserva cognitiva: pessoas que praticaram atividades que estimulavam seus cérebros ao longo da vida desenvolvem uma camada de proteção a danos que o músculo venha a sofrer.

Professor da Faculdade de Medicina da UFMG, Souza salienta que em 30% dos casos, a síndrome clínica é passível de prevenção. De acordo com ele, além do baixo nível educacional, a hipertensão arterial, o diabetes, o tabagismo, o sedentarismo, a depressão e a perda auditiva são fatores que podem desencadear lesões cerebrais e, por conseguinte, levar à demência – um quadro que deve custar à economia mundial cerca de US$ 2 trilhões até 2030, de acordo com o Fórum Econômico Mundial.

Detalhe: oitavo país com maior número de pessoas não alfabetizadas, o Brasil vê a incidência da demência atingir a uma população com média etária inferior a de países com melhor nível educacional, como expõe Souza.

O médico neurologista pondera, ainda, que o principal objetivo da pesquisa desenvolvida por Elisa é checar se a alfabetização, mesmo tardia, vai trazer mudanças na estrutura e conectividade cerebral, mas que seria preciso acompanhar essas pessoas ainda por até meio século para verificar se houve redução da incidência da síndrome.

Política de Estado

Para quem. “As pessoas que tem direito à Educação para Jovens e Adultos – EJA são aquelas que têm 15 anos ou mais e não são alfabetizadas; aquelas que têm 15 anos ou mais e não tem o Ensino Fundamental Completo e aquelas que tem 18 anos ou mais e não têm o Ensino Médio Completo”, explica a doutora em educação Analise da Silva.

Radiografia. De acordo com Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD) de 2014, o Brasil tem 88 milhões de pessoas nas citadas situações. Em Minas Gerais 54% da população não concluíram o ensino fundamental ou médio, em BH, 39%.

Direito. “A EJA é um direito humano, porque ela é um direito que potencializa, que contribui na aquisição de outros. Ela contribui para elevar o Índice de Desenvolvimento Humano (IDH). Ela contribui para elevar a qualidade de vida das pessoas”, diz Analise, que há 20 anos pesquisa a EJA.

Desafio. O principal desafio da EJA é “ser reconhecida como Política de Estado pelos gestores públicos que tratam a modalidade prevista na Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional como programa, projeto, campanha, ou seja, algo que se faz quando sobra tempo, verba, disposição e vontade”, acrescenta.

Apesar dos desafios, brasileiros buscam formação

A doméstica Maria de Fátima, 51, conclui, no final desse ano, o ensino médio. “Às vezes, nem acredito”, brinca ela, que foi para a escola pela primeira vez aos 40 anos. Sua história, como a de tantos dos 11,8 milhões de pessoas não alfabetizadas no país, é atravessada por barreiras sociais que a impediram de cursar o ensino médio na idade regular.

Aos 6 anos, a pequena chegava ansiosa para as primeiras aulas – a contragosto de seu padrasto, que preferia vê-la trabalhando. Mas euforia durou pouco: foi agredida pelo professor – e, por isso, não mais voltou. Aos 9, veio para Belo Horizonte, a fim de morar com a avó e duas irmãs. Viviam em situação de miséria, por isso uma vizinha sugeriu que ela fosse criada pela família de uma amiga. Dos 10 aos 13 anos, Maria de Fátima cuidava de todos afazeres domésticos e ainda levava à escola, sem poder entrar, os filhos da mulher que, em teoria, cuidaria dela. Já adulta, se casou e foi sempre pressionada pelo marido a não estudar, embora aquele fosse um sonho seu. Com olhos marejados, ela lembra como era humilhante não conseguir ajudar o filho, Maicon, com seus deveres de casa.

Foi só depois do divórcio que tomou coragem. “Eu resolvi que seria reconhecida. Enquanto fui casada, nem conta em banco tive. Era como se, por não saber ler, não fosse gente”. Anunciou para a patroa que começaria o curso, e de novo foi desestimulada, mas, dessa vez, ela persistiu. 

Volta por cima. Então – assim como 3,5 milhões de brasileiro matriculados na modalidade EJA, conforme dados do Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep), de 2018 – Maria de Fátima iniciou uma nova jornada.

“Abriu um mundo novo para mim!”, alegra-se. “Hoje, se você começa a falar de um assunto, eu já consigo conversar, sabe? Estou mais antenada”, cita. Das placas de trânsito até os livros de receitas, a leitura é algo para ela prazeroso. E, o mais importante nisso tudo, se sente valorizada – pela patroa, pelos professores e, principalmente, por seu filho. “Hoje, o Maicon tem 31 anos. Ele também abandonou a escola para trabalhar. Ele diz que eu sou o orgulho da vida dele, que tem muito respeito por mim”, diz.

Portas abertas. Quando Daniel Alves da Silva, 32, viu a imponente porta de madeira do Colégio Imaculada Conceição, no Lourdes, abrir a porta antes mesmo que acionasse a campainha, ficou surpreso. Vivendo em situação de rua desde os 13 anos, estava mais habituado a vê-las fechadas.

Foi em um abrigo para pessoas sem moradia que Daniel ouviu falar vagas para a EJA – Educação para Jovens e Adultos. Então, pela primeira vez desde a adolescência – quando foi expulso de casa por conta de um conflito familiar –, ele vislumbrou a possibilidade de voltar a estudar. Quer, agora, concluir o ensino básico e prestar o Exame Nacional do Ensino Médio (Enem), para completar sua formação. 

O objetivo de Daniel ao adentrar aquelas portas era um só: dar peso ao currículo, buscando um novo horizonte. Há três meses no curso, descobriu outros valores por ali. “Os professores falam que eu sou muito inteligente”, diz, com um incontido riso, denunciando tímida reconstituição de uma autoestima há muito abalada.

Obstáculos. Em toda a vida, os desafios para chegar a uma escola sempre foram tão fartos quanto é o sorriso do baiano Jonas Souto de Queiroz, 39. Na infância, mudou-se para o interior do Pará com seus pais. Caminhava cerca de cinco quilômetros para ir à aula. Então, mudou-se para mais longe e, trabalhando em uma roça, acabou abandonando o colégio. “Estudei só cinco meses. Depois fiquei seis anos sem ir na cidade”, rememora.

Aos 38 anos, ele voltou a frequentar a escola. Jonas mira no exemplo de um “coleguinha”, como costuma chamar seus amigos: em um abrigo público, na região Centro-Sul da capital, conheceu Cassimiro Gonçalves dos Santos Neto, 38 – que estampou o noticiário recente ao conquistar vaga para estudar engenharia mecânica na UFMG.

Inspirado pela história, ele segue enfrentando desafios diários no intento de aprender: quando consegue algum bico, dorme em albergues, caso contrário, precisa dormir na rua. Assim, mesmo que todos os dias tenha que contar com a generosidade de um passante para ter o que comer, há um ano ele se mantém frequente na EJA.

Foi assim que, aliás, passou a se reconhecer um pouco mais integrado à sociedade. Quando começou a estudar, Jonas não possuía sequer um documento de identidade válido. Em aula que tomou nota do direito de que poderia requerer o título gratuitamente. Conquista dupla, agora, a nova carteira de identificação não traz só sua digital: ali se lê em caprichosas letras seu primeiro nome.

Permanência é o maior desafio para alunos

“Há quatro anos trabalho com alunos da EJA e posso dizer: para mim, isso significou um crescimento pessoal e profissional que não consigo mensurar. Hoje, a minha leitura sobre a realidade brasileira, sobre a educação no país e também da capacidade de superação das pessoas é de outra ordem”, reconhece Laura Suvalsky, pedagoga do Colégio Imaculada Conceição. Ela expõe que há alunos de 16 a 80 anos, cujas trajetórias pessoais inspiraram a publicação do livro “Tecendo Memórias: 100 anos do Colégio Imaculada, 100 Histórias de Vida na EJA” – que já ganhou duas edições.

“A razão para virem aqui é a busca por emprego, por melhorar sua situação econômica, é gente que foi humilhada no trabalho, ou que quer entender melhor seus direitos”, examina a pedagoga, que completa, “ao fim, são pessoas que buscam resgatar sua cidadania, sua autoestima e sua dignidade por meio da educação, pois através da leitura e da escrita passam a se sentir mais inseridos no mundo”.

A sensação de incapacidade e a vergonha de não ser alfabetizado são empecilhos para que jovens e adultos iniciem a jornada escolar. Mas, para Laura, a principal dificuldade da EJA é a permanência. No primeiro semestre deste ano, o índice de evasão foi de 15,5%, apesar de todo trabalho de acolhimento desenvolvido no colégio.

“São pessoas que nunca estudaram ou tiveram que sair da escola na infância para complementar a renda doméstica e que, agora, precisam vencer obstáculos – como o cansaço, o ciúme do companheiro, os problemas com o filho, ou mesmo algum vício – para continuarem presentes”, situa.

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