Para muitas pessoas, uma rotina de sono adequada pode estar associada apenas a sentir-se melhor durante o dia, evitando a sonolência e a fadiga. Porém, há mecanismos importantes que acontecem ao adormecer que, quando interrompidos pela má qualidade do sono ou pela curta duração, provocam impactos diretos no cérebro, mesmo após uma única noite. A longo prazo, cada vez mais evidências têm destacado o maior risco para a doença de Alzheimer e outras formas de demência.

— O sono tem funções amplas para a nossa saúde, envolvido em vários processos hormonais, no fortalecimento de imunidade, na limpeza de substâncias tóxicas no cérebro. A privação crônica do sono é um fator de risco conhecido para doenças cardiovasculares, por exemplo. Porém, estudos mais recentes têm apontado a relação com o crescimento das doenças neurodegenerativas e as demências, de vários tipos, especialmente o Alzheimer — explica a neurologista e presidente da regional Centro-Oeste da Associação Brasileira do Sono (ABS), Giuliana Mendes.

Um dos estudos mais comentados para avaliar o impacto da privação de sono e a doença de Alzheimer foi conduzido por pesquisadores do Laboratório de Neuroimagem dos Institutos Nacionais de Saúde dos Estados Unidos (NIH), publicado no periódico PNAS. Nele, foram recrutados 20 participantes saudáveis que tiveram imagens cerebrais feitas após duas noites: uma em que dormiram de forma normal e outra em que permaneceram acordados.

Os resultados mostraram que apenas uma noite foi suficiente para que os exames indicassem um aumento da proteína beta-amiloide. Embora a fisiologia do Alzheimer ainda não seja completamente desvendada, sabe-se que um dos processos envolvidos na doença é o acúmulo dessa substância no cérebro. Esse crescimento foi observado na região do hipocampo, “que é considerada entre as regiões cerebrais mais sensíveis à neuropatologia da doença de Alzheimer”, escreveram os pesquisadores.

— Esse é um dos estudos mais interessantes sobre o tema. Mas vários outros trabalhos também seguem nessa linha, comprovando essa relação. Isso porque já foi provado que durante o sono nós aumentamos um processo de limpeza da beta-amiloide, que é como uma lavagem da proteína do cérebro — afirma a neurologista do Hospital das Clínicas da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) Elisa Resende, vice-coordenadora do departamento científico de Neurologia Cognitiva e Envelhecimento da Academia Brasileira de Neurologia (ABN).

As especialistas explicam que essa limpeza, chamada de sistema glinfático, atua especialmente durante o sono para limpar não apenas a beta-amiloide, como outras toxinas, metabólitos e resíduos que permanecem no Sistema Nervoso Central (SNC) durante o dia. Logo, uma noite em que se dorme pouco – ou que se dorme mal – prejudica a atuação desse sistema.

Quanto de sono é preciso?

Os impactos são confirmados ao se observar grandes grupos de pessoas, os hábitos de sono e a incidência da doença. Um estudo publicado na revista científica Nature Communications por pesquisadores da Universidade de Paris, na França, analisou quase oito mil pessoas durante um período de 25 anos. Os resultados mostraram que uma rotina de seis horas ou menos de sono entre aqueles de 50 a 70 anos elevou os casos de demência em cerca de 30% em comparação aos que dormiam por sete horas.

Outro trabalho, conduzido por pesquisadores de Harvard com 2,8 mil indivíduos a partir de 65 anos, mostrou que o sono inferior a cinco horas torna esse impacto ainda pior, dobrando o risco de déficit cognitivo. Mais estudos mostram ainda que, além da duração, a má qualidade do sono também traz os prejuízos.

Revisando 18 trabalhos, que incluíram 247 mil pessoas durante um período de quase 10 anos, cientistas chineses identificaram que participantes com distúrbios do sono, como insônia, apneia, sonolência diurna (que indica noite mal dormida) e outras queixas, também apresentam significativamente mais casos de problemas cognitivos a longo prazo. A conclusão foi publicada no periódico Sleep Medicine Reviews.

— A parada respiratória da apneia, por exemplo, interrompe a oxigenação do cérebro por diversas vezes durante a noite. Por isso, ao longo do tempo, já há estudos mostrando que ela é um grande fator de risco para doenças neurodegenerativas — diz Giuliana.

No entanto, um fato curioso é que o inverso também parece ser verdadeiro: pessoas que dormem demais também apresentam mais casos de demência. Uma análise publicada na revista científica Journal of the American Geriatrics Society, por cientistas da Universidade Shandong, na China, de cerca de duas mil pessoas a partir de 60 anos, observou um total 69% maior de casos entre os que dormiam mais de oito horas por noite.

Embora seja mais compreendido como a privação do sono eleva esse risco, a relação entre o excesso de horas na cama e o maior número de casos ainda é um mistério. Uma das possibilidades é que as pessoas já estivessem vivendo os primeiros sintomas de um quadro neurodegenerativo, que por sua vez prejudicam a qualidade do sono. Com isso, por terem mais dificuldade de adormecer, muitas pessoas podem passar mais tempo na cama e relatar um número de horas elevado.

— É aquilo do ovo e da galinha, quem veio primeiro. O Alzheimer tem início no cerúleo, ou locus ceruleus, uma região do tronco do cérebro que controla o ciclo do sono e vigília. A proteína do Alzheimer é detectada lá muito antes do desenvolvimento de sintomas. Então pode ser que essa dificuldade de dormir seja já um sintoma da doença, e não uma causa. Ainda estamos desvendando o que vem primeiro — afirma Elisa.

Ela explica que um dos entraves é que, por questões éticas, não há muitos estudos de intervenção, que envolveriam submeter indivíduos a longos períodos de sono alterado para, ao fim, avaliar qual tipo de mudança foi uma causa da maior incidência de demência. Com isso, as conclusões hoje são baseadas em estudos epidemiológicos, que observam os números da doença em populações acompanhadas durante anos, e os relacionam com os relatos dos participantes sobre a duração do sono. Uma das limitações é que isso depende da informação fornecida pela pessoa, que nem sempre é verdadeira.

Por enquanto, as evidências disponíveis levaram pesquisadores, em estudo publicado na revista Nature, a definirem como sete horas de sono o número ideal para proteger o cérebro. Porém, Giuliana, da ABS, pontua que as pessoas devem focar não somente na duração, mas também se o sono está tendo o caráter reparador. Isso porque, embora exista uma média, cada um tem uma necessidade diferente de tempo para se sentir recuperado durante a noite.

— O sono não reparador é o que a pessoa não se sente descansada. Quando mesmo tendo dormido uma quantidade de horas considerada ideal, ela não fica bem durante o dia, com perda de concentração, de memória, dificuldade em executar as tarefas, com alterações de humor — explica a neurologista da ABS.

Quando o remédio piora a doença

Embora essa relação de problemas para dormir e maior risco de doenças neurodegenerativas possa levar à ideia de que tratamentos potentes para adormecer, como medicamentosos, seriam benéficos, a realidade é o contrário. Elisa explica que o uso prolongado de benzodiazepínicos, drogas descobertas nos anos 60 para induzir o sono, ainda muito utilizadas hoje, foram ligados a um maior déficit cognitivo a longo prazo.

Já os medicamentos mais recentes, chamados de drogas Z, como é o caso do Zolpidem, ainda não apresentam evidências de impactos significativos na cognição. No entanto, Elisa diz que é possível que esse efeito seja eventualmente observado quando houver tempo suficiente de uso para avaliar essa relação.

— No início as drogas Z foram consideradas mais seguras, mas hoje sabemos que também atrapalham a arquitetura do sono, com os episódios de confusão mental, as alucinações. Os estudos com os benzodiazepínicos acompanharam pessoas por 10 anos, um longo período, e não temos ainda estudos tão longos com as drogas Z. Mas, pelo mecanismo de ação, imaginamos que elas tenham sim também um efeito cognitivo a longo prazo — avalia Elisa, da ABN.

O receio é especialmente porque, embora a bula do Zolpidem destaque que o remédio não deva ser tomado por mais de quatro semanas seguidas, tratando-se de uma terapia pontual, muitas pessoas passam anos ininterruptos adormecendo apenas com a ajuda do remédio.

As especialistas ressaltam que, em caso de problemas para dormir, a primeira estratégia deve ser sempre adotar as técnicas de higiene de sono, como evitar telas ao menos uma hora antes de se deitar, evitar bebidas cafeinadas, especialmente no fim do dia, e praticar atividade física regular.

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