A comunidade de cientistas que estudam o mal de Alzheimer e pesquisam tratamentos vive um momento tenso. A única droga aprovada para tentar frear o quadro de morte de neurônios e perda de memória que caracterizam a doença passa por questionamentos. Ao mesmo tempo, parte dos estudos que contribuíram para a teoria mais aceita sobre a enfermidade estão sob suspeita de fraude.
Os dois acontecimentos não possuem ligação direta entre si, mas alimentam um cenário que torna mais difícil saber quando, e se, um medicamento eficaz para essa forma de demência entrará no mercado global. No cerne da questão está uma proteína chamada beta-amiloide. É essa a molécula que se acumula no cérebro de algumas pessoas e, segundo a hipótese mais aceita, desencadeia uma cascata de processos biomoleculares que levam ao mal de Alzheimer.
O meio de ação do Aducanumab, o primeiro medicamento liberado para uso em pacientes da doença (por enquanto só nos EUA) foi pensado com base nessa hipótese. A droga consiste em anticorpos monoclonais, proteínas do sistema imune fabricadas artificialmente, programadas para atacar a beta-amiloide.
Em testes iniciais, o fármaco se mostrou promissor. Mas na fase três de ensaios clínicos, que avalia a eficácia da droga em pessoas, os resultados foram ambíguos. Um ano após o início da pesquisa, em 2016, o ensaio para testar o medicamento foi interrompido quando empresa Biogen anunciou que não havia ainda evidência de eficácia. Em 2019, porém, a análise de um subgrupo maior de pacientes indicou uma eficácia da droga para 22% dos voluntários, o que levou a FDA (agência reguladora de medicamentos dos EUA) a aprovar seu uso, mesmo sob questionamento.
Neurologistas agora parecem se dividir entre aqueles que estão céticos com relação à utilidade do medicamento, que possui efeitos colaterais, e outros mais esperançosos, que esperam mais pacientemente uma conclusão de novas pesquisas.
A Biogen elabora um teste de fase 4, com grupo grande de pacientes, como uma espécie de tira-teima do Aducanumab. Alguns centros de estudo brasileiros negociam a inclusão de voluntários brasileiros no estudo.
Pesquisas sob suspeita
Enquanto a comunidade de pesquisa aguarda essa resposta, porém, as denúncias de fraude — algumas pesando sobre estudos com mais de 15 anos — começaram a corroer parte da base de apoio da teoria sobre a beta-amiloide.
A descoberta desses estudos com figuras manipuladas começou quando acionistas da empresa de biotecnologia Cassava desconfiaram de resultados nos testes clínicos de uma outa droga antiamiloide, o Simufilam, produzido pela companhia. Um cientista contratado em segredo pelo grupo encontrou sinais de manipulação no estudo que reportava seus resultados, e provocou a interrupção dos trabalhos. Mas as pesquisas do Simufilam era apenas parte do problema.
Em uma investigação encomendada pela revista Science para uma reportagem, outros sete especialistas atestaram que uma série de 20 artigos científicos sobre Alzheimer e beta-amiloide apresentava problemas. A revista também revelou o nome do pesquisador que descobriu as fraudes, Matthew Schrag, da Universidade Vanderbilt.
Ele constatou que os trabalhos com sinais de manipulação tinham quase todos o envolvimento de outro neurocientista, Sylvain Lesné, da Universidade de Minnesota, e incluíam um estudo altamente influente na área, publicado em 2006.
Naquele ano a teoria da cascata amiloide passava por alguns questionamentos, mas Lesné ajudou a fortalecê-la. Num experimento com ratos, ele apontou que um subtipo específico da beta-amiloide se acumulava no cérebro na forma de placas e levava a sintomas de demência. A correlação entre as placas amiloides e a ocorrência da doença sempre foi observada, mas até o trabalho de Lesné não se tinha tanta certeza se ela seria uma causa ou consequência. O pesquisador não se pronunciou sobre a suspeita que recai agora sobre seu trabalho.
Uma parcela grande da comunidade de pesquisa prefere a hipótese de que o processamento bioquímico de uma outra proteína, chamada tau, estaria mais na origem dos sintomas dos sintomas do Alzheimer. O ceticismo com a teoria amiloide ficou restrito a este grupo e outros minoritários, que propuseram outras abordagens para medicamentos. Mas o cenário pode mudar.
Rumo incerto
Um dos principais defensores dessa hipótese, Dennis Selkoe, da Universidade Harvard, se diz convicto sobre a teoria. Seu último artigo, que não menciona o nome de Lesné, é intitulado com a pergunta “Se a amiloide leva à doença de Alzheimer, por que terapias antiamiloides não frearam o declínio cognitivo?”.
“Será que nós simplesmente perdemos um valioso tempo trabalhando nos alvos errados, e que há ‘vias alternativas” que cientistas não enxergaram ainda?”, escreveu, em coautoria com o neurocientista alemão Christian Haass. “Essa visão particularmente catastrófica não está correta.”
A dupla argumenta que o problema está nos testes clínicos, e não na biologia básica da doença, porque a expectativa de que as terapias mostrariam resultados em apenas 12 ou 18 meses é otimista demais. “Muitos testes de antiamiloides tiveram componentes inadequados, seleção pouco ideal de pacientes, início de tratamento tardio no processo biológico, além de falhas de execução”, afirmam.
Desde o ano passado, a Cassava tem negado fraudes em seus testes.
“Nenhuma agência governamental nos informou ter achado evidência de má conduta de pesquisa”, afirmou em nota o CEO da empresa, Remi Barbier, na semana passada. “Em troca de ganhar US$ 100 milhões num dia, alguns investidores podem ser incentivados a fazer alegações falsas.”
Alguns pesquisadores no Brasil, mais distante do foco de controvérsia, cogitam outras explicações para as falhas das drogas antiamiloides.
— No meu entendimento, a teoria da cascata amiloide é válida, mas para um grupo pequeno de pacientes, cerca de 5%, que possuem uma doença de Alzheimer geneticamente determinada, com mutações em três genes possíveis — diz Leonardo Cruz de Souza, professor de neurologia na UFMG (Universidade Federal de Minas Gerais).
— Essa é uma doença muito diferente, porque pega uma faixa etária mais jovem, em torno de 55 anos, e evolui muito mais rápido do que a forma comum de Alzheimer, que se manifesta em torno dos 70 anos — explica.
Para o neurologista Lucas Schilling, da PUC-RS (Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul), o teste de fase 4 do medicamento da Biogen, o Aducanumab, será um indicador importante para o caminho que o campo de pesquisa deverá seguir.
— Esse é o estudo que provavelmente vai justificar a aprovação da droga em larga escala ou, eventualmente, vai refutar o seu benefício — diz o pesquisador.
Se o cenário de pesquisa clínica der uma guinada para outros alvos terapêuticos, porém, não necessariamente o caminho será fácil. Pesquisadores que testavam a droga Semorinemab, que combate o acúmulo da proteína tau nos neurônios, anunciaram na semana passada que o medicamento falhou nesse objetivo durante a fase 2 dos testes clínicos. Os cientistas, porém, reafirmam que a tau continua sendo um alvo prioritário para novas drogas.