A poucos minutos do fim do primeiro tempo de jogo, o zagueiro Miranda chocou-se de cabeça contra o corpo do goleiro Alisson. Logo depois, ele desceu ao vestiário e foi examinado pelo médico da Seleção Brasileira Rodrigo Lasmar. Ao lhe ser perguntado onde estava, não titubeou: “Na Copa do Mundo, estamos na Rússia”. Miranda não voltou para o segundo tempo e foi cortado da equipe para a partida seguinte. Por quê? Porque o Brasil estava em Porto Alegre, em 2017, disputando as eliminatórias sul-americanas contra o Equador, ainda em busca de uma vaga no Mundial.
A resposta de Miranda foi um claro sinal da confusão mental causada pela concussão cerebral após um trauma craniano. Diagnóstico que deve ser seguido da imediata retirada do jogador de campo e de uma bateria de exames antes do retorno ao esporte, em uma semana, em média, se tudo estiver bem. Ou há riscos de sequelas no futuro e até de óbito do atleta. Na ocasião, o técnico Tite teve de gastar uma substituição das três permitidas. A Fifa testou no Mundial de Clubes, que terminou no último dia 11 com a vitória do Bayern de Munique, no Catar, uma nova medida. No torneio, foi permitida uma troca extra em caso de concussão comprovada pela equipe médica.
“Desde 2013, 5% das lesões dos jogadores são relatadas como concussões. Dentro dos traumas de crânio, 40% são concussões”
A nova diretriz, em caráter experimental, é um passo ainda pequeno na tentativa de promover a segurança dos atletas. Afinal, nem sempre as recomendações da medicina têm sido seguidas à risca. Não exatamente por falha dos médicos à beira do campo, mas pela falta de um protocolo definitivo e pela pressão vinda da comissão técnica e do próprio jogador. Há episódios marcantes na última década, como o do zagueiro uruguaio Álvaro Pereira. Contra a Inglaterra, na Copa de 2014, ele levou uma joelhada na cabeça e foi a nocaute, inconsciente. Ao sair de campo e perceber que o médico do Uruguai pedia sua substituição, o jogador, de forma descontrolada, exigiu continuar no jogo e foi atendido.
No momento do choque na cabeça, o cérebro, apesar de ser protegido por um líquido que o impede de bater com força na caixa craniana, sofre um impacto capaz de gerar microlesões nos neurônios e vasos sanguíneos. Como consequência, há alterações inflamatórias e vários neurotransmissores são ativados, causando os principais sintomas. “Quando a cabeça recebe um impacto forte e faz concussão, alguma região do cérebro, mesmo pequena, fica inchada, com edema bem pequeno. Se sofre uma segunda concussão naquela mesma ocasião, pode acontecer de o edema se multiplicar e crescer. É raro, mas pode levar a óbito, como já aconteceu no boxe e no futebol americano”, disse o neurologista Renato Anghinah, professor da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (USP) e médico do Sindicato de Atletas de São Paulo.
Em 2018, uma falha na avaliação permitiu que o goleiro Karius, do Liverpool, permanecesse em campo na final da Liga dos Campeões contra o Real Madrid. Ele levou uma cotovelada do zagueiro Sergio Ramos e, como não caiu no chão nem perdeu a consciência, nem sequer houve atendimento. Logo em seguida, ele falhou nos gols do título dos espanhóis. Dias depois, exames mais minuciosos concluíram que o jogador sofreu concussão e teve “disfunção espacial visual”. Se ele tivesse sido substituído como manda a literatura médica, o resultado poderia ter sido outro. A equipe madrilenha acabou campeã.
As mudanças lentas da Fifa, muitas vezes apenas por diretrizes, e não protocolos, não acompanham as rápidas transformações no jogo, a cada dia mais físico e de contato, sobretudo de cabeça com cabeça nas bolas aéreas. Desde 2016, a CBF tem feito um mapa de lesões e, em média, de 4% a 5% são relatadas como concussões na Série A do Brasileiro. Dentro dos traumas de crânio, que são 10%, em média, 40% são concussões.
Para esmiuçar a questão, desde o segundo turno de 2019, os médicos dos clubes passaram a preencher um questionário de papel detalhando o tipo de choque (cabeça com cabeça, cotovelada, outras partes do corpo ou acidentes), os principais sinais diagnosticados e o seguimento do tratamento. O procedimento foi suspenso em 2020 por causa da pandemia e será computadorizado.
No mesmo período, foi implementado um protocolo de avaliação imediata também usado na Copa América de 2019. Caso o jogador sofra uma pancada na cabeça e apresente um ou mais sinais previstos no documento, chamados de Red Flags (bandeiras vermelhas, na tradução do inglês), ele deve ser retirado de campo e substituído imediatamente. Há ainda outros sinais de alerta, como vômitos, dor de cabeça intensa e visão dupla, além do teste de memória, como o feito em Miranda. Mesmo assim, na competição continental, há dois anos, houve caso de jogador — seu nome não foi divulgado — que atuou com concussão por 18 minutos. O diagnóstico só foi feito após a partida.
No caso mais recente no Brasil, no final de dezembro de 2020, o protocolo foi seguido à risca. O goleiro Cássio, do Corinthians, chocou-se com um jogador do Goiás e caiu inconsciente. Foi levado diretamente para o hospital, passou por exames de imagem e ficou de repouso por alguns dias. Ele só voltou a jogar depois de quase três semanas. Em 2016, ele vivera situação parecida na Libertadores: choque, desmaio, tontura e atordoamento. Porém, continuou em campo até o fim do jogo.
Os testes cognitivos e exames de imagem de Cássio puderam ser comparados com os que foram feitos ainda na pré-temporada, usando, inclusive, realidade virtual. O Corinthians e outros clubes de São Paulo passaram a adotar o exame cognitivo como parte da bateria de testes prévios ao início das competições. Ele só retornou quando todos os resultados voltaram ao normal. “Se perder a consciência, ficar parado no chão, andar cambaleando, mostrar irritabilidade e não souber onde está, ele tem de sair na hora. Porém, mais de 90% dos casos de concussão não têm perda de consciência, e é necessário mais tempo para o diagnóstico fora do campo. A tomografia dificilmente aponta concussão, pois são microlesões”, afirmou o neurologista Jorge Pagura, presidente da Comissão Nacional de Médicos da CBF, que recomenda que os testes cognitivos façam parte dos exames da pré-temporada para que o atleta possa ser avaliado com eles mesmos. Porém, não há obrigatoriedade por parte dos clubes.
Para avançar nos cuidados com os atletas, o futebol precisa olhar outros esportes, como o futebol americano, o rúgbi e a NBA. Todos têm protocolos bem definidos e uma comissão médica independente das equipes avalia os casos de trauma na cabeça e determina a retirada do jogador. Na NFL, por exemplo, já faz parte da dinâmica do jogo. O narrador da partida informa que “o protocolo de concussão está aberto” assim que um atleta sofre um choque de cabeça e sai de campo.
A favor desses esportes, a substituição é constante. No caso do futebol, a demora no diagnóstico atrasa a partida. Em média, a concussão é confirmada em até cinco minutos — a diretriz da Fifa trata de três minutos dentro do campo. Mas, em casos com menos sinais evidentes, é necessário fazer o chamado SCAT 5 (uma série de testes e exames clínicos, como sinais, sintomas e memória, mais precisos para o diagnóstico).
Por isso, entidades ligadas a jogadores brigam pela introdução da substituição temporária, de até dez minutos, para não haver prejuízo ao time e a comissão médica não se sentir pressionada a tomar uma decisão apressada. Além disso, trabalham com a educação de todos os envolvidos no esporte para ter a real dimensão do problema. “O ideal seria uma comissão decidindo junto os casos de concussão. Acho importante também o uso do VAR. O médico na beira do campo muitas vezes nem percebe um choque no meio da partida, como aconteceu com o Karius. Um médico vendo o VAR pode comunicar ao médico do clube e com essa substituição extra ou temporária poderia avaliar melhor o caso”, disse Pagura.
Todos os protocolos existentes atualmente evoluíram após as entidades esportivas admitirem o real risco aos atletas nos choques de cabeça. Esses avanços são frutos da ciência, que tem se debruçado sobre a questão nas últimas décadas. Afinal, o trauma do segundo impacto é apenas uma das consequências da concussão. Os distúrbios mentais e as doenças degenerativas associadas à concussão têm inúmeros estudos mais recentes. Muitos ainda não são totalmente conclusivos.
A literatura médica atual trabalha com a teoria de que seguidas concussões ou subconcussões podem desencadear uma série de alterações no cérebro que causaria a chamada encefalopatia traumática crônica (ETC). A doença degenerativa já era conhecida desde os anos 1920 como “demência do pugilista”, mal que acomete o boxeador brasileiro Maguila há anos. Mas, além da perda cognitiva, a associação com distúrbios de comportamento, como episódios de depressão, violência e suicídio, só vieram à tona com a autópsia de cérebros de ex-jogadores da NFL feita pelo médico nigeriano Bennet Omalu. Sua história foi protagonizada no cinema por Will Smith no filme Um homem entre gigantes (2015).
Logo depois, estudos realizados pela neurologista americana Ann Mckee, em mais de um centena de cérebros de ex-jogadores de futebol americano, em Boston, mostraram números alarmantes de mais de 90% de casos de ETC. Revisado, esse número caiu para cerca de 30%.
“A literatura médica atual trabalha com a teoria de que seguidas concussões ou subconcussões podem desencadear uma série de alterações no cérebro que causaria a chamada Encefalopatia Traumática Crônica (ETC)
Foi observando esses casos que o neurologista da USP Ricardo Nitrini decidiu fazer o mesmo estudo com o ex-zagueiro Bellini, capitão do primeiro título mundial do Brasil, em 1958. Nitrini acompanhou o ex-jogador nos últimos anos de vida, quando ele havia recebido o diagnóstico de mal de Alzheimer, cujos sintomas de demência se assemelham à ETC. Após a morte de Bellini, em 2014, a família doou o cérebro à universidade e o caso foi apresentado em congresso de medicina como o primeiro diagnóstico da doença em um jogador de futebol. “Perceberam que o diagnóstico não se encaixava totalmente no Alzheimer, havia a questão comportamental. Foram 18 anos até o diagnóstico final, que foi dado em conjunto com outras especialistas da área, como a Ann Mckee. Em média, alguém com Alzheimer não vive mais de dez a 14 anos com a doença”, lembrou Anghinah, que foi um dos coordenadores do estudo. “A ETC também pode aparecer antes dos 50 anos, no chamado grupo precoce. Nestes casos, predominam alterações comportamentais, a pessoa pode se tornar mais agressiva e com tendências suicidas.”
Mas ainda há muita dificuldade para um diagnóstico preciso e da evolução do caso, pois só é feito com o estudo do cérebro do ex-atleta após a morte. Os avanços científicos já permitem algumas avaliações, em nível de pesquisa, de marcadores da ETC, como a proteína TAU, em exames de imagem e da retirada do liquor cerebral, o fluido que atua como amortecedor das estruturas cerebrais e fornece nutrientes. Se a proteína for encontrada em alta quantidade em determinadas regiões do órgão, a doença pode ser confirmada. Os especialistas acreditam que, em breve, os marcadores poderão ser identificados num simples exame de sangue, facilitando a identificação, o acompanhamento e o tratamento da doença.
Recentemente, ex-jogadores da seleção da Inglaterra campeã de 1966 tiveram diagnósticos de demência, como Bobby Charlton, ou morreram em decorrência da doença, como Nobby Stiles. Neste último caso, o neuropatologista Willie Stewars estudou o cérebro de Stiles e associou os danos cerebrais ao ato de cabecear a bola. Nos anos 1960, a bola era de couro e bem mais pesada do que as atuais.
A relação, no entanto, ainda não está clara e divide os especialistas. Nos Estados Unidos, por exemplo, há recomendação de não treinar o cabeceio nas categorias de base, pois o cérebro das crianças ainda está em formação. No Brasil, não há qualquer medida nesse sentido. O neurologista Paulo Caramelli, da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), coordena um estudo com jogadores do Atlético-MG e do América-MG. O trabalho teve de ser paralisado por causa da pandemia antes da conclusão dos testes. “Há poucos estudos no futebol profissional com jogadores na ativa. A ideia é acompanhar um grupo de jogadores com avaliações cognitivas clássicas, testes computadorizados que medem a acurácia da resposta e tempo de reação e ressonância magnética. E fazer a comparação com um grupo de controle com características semelhantes, mas que não pratica futebol. Assim poderemos ver se há mudanças ao longo do tempo”, disse Caramelli, ressaltando que o protocolo precisa ser levado a sério e ser bastante divulgado. “A torcida fica encantada com a raça do jogador, aquele que morre pelo time. No calor do jogo, o atleta sempre vai querer jogar. Nessa hora, a palavra final tem de ser do médico.”
Qualquer medida, no entanto, é bem-vista pelos cientistas da área. A maior dificuldade, justamente, é estabelecer uma causa exata, cujas consequências só vão aparecer daqui a duas décadas, quando poderá ser tarde demais.
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