Em agosto, o professor da Universidade Federal de Minas Gerais Paulo Caramelli assumiu a coordenação do conselho consultivo da Sociedade Internacional para o Avanço da Pesquisa e Tratamento da Doença de Alzheimer. Trata-se de um feito não apenas inédito para um brasileiro, mas também a estreia de um pesquisador de fora de países da Europa e da América do Norte à frente da organização. Criada em 2008, a Sociedade conecta uma equipe internacional de cientistas dedicados a ampliar os trabalhos sobre o Alzheimer e outras formas de demência.
Em entrevista ao GLOBO, Caramelli fala sobre como a estimativa de crescimento do diagnóstico – que deve triplicar até 2050 – afeta desproporcionalmente países de média e baixa renda, como o Brasil. O coordenador da ISTAART também explica como é possível prevenir quase metade das formas de demência e comenta sobre as perspectivas para o tratamento do Alzheimer em meio a fraudes de estudos reveladas neste ano.
O senhor costuma afirmar que países como o Brasil terão nos próximos anos um número maior de casos de Alzheimer do que outros. O que isso significa?
Mais da metade dos casos de demência, como Alzheimer, no mundo ocorrerá em poucos anos em países de média e baixa renda, que são, em geral, também muito populosos, como Brasil, Índia, China, Nigéria, México. Além disso, são países que estão passando por um aumento do número de idosos que em grande parte já foi atingido em países da Europa e da América do Norte. Outro motivo importante é que alguns fatores de risco reconhecidos para a demência, como os cardiovasculares, a hipertensão arterial e a diabetes, são mais frequentes nestes países e de forma pior controlada.
Há ainda a questão do nível socioeconômico. Nós sabemos que níveis mais baixos reduzem o acesso à educação de melhor qualidade e ao maior número de anos de educação formal, além do acesso a melhores sistemas de saúde e a alimentos com melhor nutrição. A questão da escolaridade é especialmente importante porque nós sabemos que níveis mais baixos, de forma mais dramática o analfabetismo, são grandes fatores de risco para a demência, porque eles diminuem o que chamamos de reserva cognitiva do cérebro para fazer frente a essas doenças que afetam justamente a cognição.
Qual é a verdadeira relação entre mudanças de estilo de vida e a incidência do diagnóstico?
A prevenção consiste no controle de fatores de risco modificáveis. Sabemos hoje, de acordo com uma comissão patrocinada pela revista Lancet, que aproximadamente 40% das demências estão relacionadas a 12 fatores sobre os quais nós podemos atuar para reduzir a prevalência do diagnóstico, o que é uma parcela muito grande dos casos. Esses fatores são distribuídos ao longo da vida. Na infância, por exemplo, a escolaridade reduz esse risco. Na meia-idade, deficiência auditiva moderada a grave não tratada é outro fator ligado ao risco maior. Mas há uma série de outros fatores que perduram durante toda a vida, como níveis de hipertensão arterial e colesterol, diabetes, sedentarismo, tabagismo, que se não forem evitados ou controlados elevam o risco. Há ainda pontos que são mais difíceis de serem modificados, como poluição ambiental.
A Organização Mundial da Saúde diz que o mundo está falhando no combate à demência, traçando um cenário de crescimento da doença em mais de 150% até 2050, passando de 55 para 139 milhões de pacientes. O que deveríamos fazer de diferente?
Existem programas sociais como os voltados para a melhora de condições de vida da população, para o acesso universal à escola de boa qualidade, da educação de jovens e adultos que não tiveram a oportunidade de estudar na infância, para o controle de fatores de risco de saúde, como evitar o sedentarismo, que poderiam ser implementados em nível nacional em cada um dos países, o que levaria a um impacto enorme sobre os casos de demência a médio e longo prazo. De certo modo, é algo que já está no radar, pois há planos nacionais de demência em diversos países, e a Organização Pan-americana de Saúde definiu em 2015 que os países membros implementariam as medidas, o Brasil sendo um deles. Porém sabemos que as velocidades com que isso tem acontecido são bem diferentes. Costa Rica e Chile, por exemplo, estão mais avançados, mas em outros a discussão ainda está de forma mais incipiente, como no Brasil.
A resposta à demência no Brasil nos últimos anos tem sido insatisfatória?
Nós melhoramos muito, mas temos uma lição de casa longa a ser cumprida. Existem algumas políticas de saúde pública interessantes, muito relacionadas ao idoso e ao envelhecimento, mas ainda poucas iniciativas e programas específicos para demência, seja para prevenção ou tratamento. Especificamente sobre Alzheimer, desde 2002 há projetos públicos de tratamento, o que é um avanço, mas ainda não é suficiente. Até porque é muito desigual, (os projetos) são apenas em cidades grandes, ligadas a instituições acadêmicas, onde existe uma estrutura melhor, mas no geral não há tanto acesso a uma atenção multiprofissional e a um número necessário de profissionais especializados em lidar com a demência pelo país.
Quais as perspectivas para um tratamento que reverta a perda cognitiva causada pelo Alzheimer?
Medidas preventivas são muito importantes justamente pois ainda estamos distantes de um tratamento curativo para de fato modificar o curso da doença de Alzheimer, que é a forma de demência mais frequente. Embora haja uma quantidade enorme de pesquisas, ainda estamos longe dessa realidade. Além disso, nós sabemos hoje com base em diversos estudos que o Alzheimer, embora seja a causa mais frequente de demência, na maioria das vezes está acompanhado de outras doenças, como um acidente vascular cerebral e outras causas degenerativas que podem estar presentes no cérebro de pessoas idosas em conjunto com o Alzheimer.
Um estudo muito interessante conduzido há poucos anos nos Estados Unidos mostrou que, em pessoas com mais de 80 anos que faleceram com demência e doaram seus cérebros, 25% delas tinham quatro proteinopatias, ou seja, quatro doenças degenerativas diferentes que estavam relacionadas ao diagnóstico de demência. Então mesmo se hoje nós tivéssemos uma medicação extremamente efetiva para o Alzheimer hoje, o problema não estaria completamente resolvido. Diante deste cenário, nós entendemos que a prevenção tem um papel fundamental.
Em 2021, pela primeira vez em 18 anos, os Estados Unidos aprovaram um remédio destinado ao Alzheimer, o Aducanumab. No entanto, esse aval não é um consenso na comunidade científica, sendo restrito ao país norte-americano. Por que o medicamento não atendeu às expectativas?
Nós estamos vivendo uma entressafra longa, o último medicamento aprovado de forma unânime foi em 2003, há quase 20 anos, para uma forma de demência moderada a grave. Desde então, a única nova medicação aprovada foi o Aducanumab, que recebeu o aval apenas da agência dos Estados Unidos. Aqui no Brasil, a Anvisa, assim como a agência europeia, a japonesa, e outras, não aprovaram. Isso porque foi um medicamento com resultados controversos nos estudos de fase 3. Foram dois estudos, um com efeito positivo, outro com negativo, mas que foram interrompidos no meio do caminho. Uma análise dos dados parciais pela FDA (agência dos EUA) constatou uma eficácia em apenas um dos estudos, especialmente na redução de uma das proteínas que formam placas no cérebro ligadas ao diagnóstico de Alzheimer, a beta-amiloide. Mas a aprovação foi polêmica e o remédio é muito pouco utilizado, até porque tem certos problemas de segurança e um preço muito elevado. No momento, estão em andamento novos estudos com o remédio.
Além dele, existe um número enorme de pesquisas em andamento que buscam atuar na doença com mecanismos diferentes. Eu diria que estamos vivendo um momento interessante de quantidade e qualidade grande dessas pesquisas, mas é uma doença muito complexa, desafiadora, com ações biológicas não 100% conhecidas, o que torna tudo mais difícil. Mas vejo o cenário com otimismo, acho que é uma questão de tempo até surgirem novas medicações. Uma cura ainda deve estar distante, mas remédios que ajudem no controle dos sintomas e a tornar a evolução mais lenta, acredito que é algo a médio prazo que devemos conseguir. Isso precisa de tempo, de qualificação e de dinheiro. E obviamente os países ricos saem na frente.
Neste ano, uma investigação publicada na revista Science revelou indícios de fraude e manipulação em imagens utilizadas em estudos consolidados sobre o Alzheimer, muitos dos quais embasam a teoria de que a formação de placas da proteína beta-amiloide no cérebro levaria ao desenvolvimento da doença – que é a base da atuação do Aducanumab. De que forma isso está sendo recebido pela comunidade científica?
Houve esse episódio de indício de fraude sobre um estudo publicado na revista Nature em 2006, que ainda está em análise. As evidências apresentadas num artigo longo publicado na Science são muito sugestivas de que houve realmente um tipo de fraude. Infelizmente, fraudes, falsificação de dados, são problemas que acontecem em todas áreas, e a ciência não está isenta disso. O que não significa que a ciência deva ser criticada, mas sim a conduta de determinados pesquisadores, que deve ser investigada e, se comprovado que houve fraude, deve enfrentar as medidas cabíveis.
Um aspecto importante, no entanto, é que algumas pessoas alegaram que essa suposta fraude colocaria por terra a teoria do papel das placas de proteína beta-amiloide no diagnóstico de Alzheimer, mas isso não é verdade. Embora de fato haja muita discussão sobre o real papel da proteína na doença, já que estudos com moléculas que limpam a amiloide no cérebro têm sido negativos para combater a doença, o estudo de 2006 se refere a uma partícula muito específica, e não à teoria amiloide como um todo. Então, se for comprovado que é fraude, isso questiona uma partícula específica da proteína, mas não derruba a teoria.
Ainda assim, hoje as formas de tratamento disponíveis conseguem garantir uma qualidade de vida melhor às pessoas com demência?
Eu vivi uma época do Alzheimer antes de existir qualquer medicação e depois, no final dos anos 90, quando começaram a ser aprovados alguns medicamentos. O surgimento dos remédios e um conhecimento maior a respeito da doença, dos fatores de risco, tudo levou a um acompanhamento clínico muito melhor para essas pessoas. Hoje conseguimos dar um suporte tanto clínico como psicológico para o paciente, cuidadores e familiares. E sobre os medicamentos, os estudos observacionais mostram que com o passar dos anos aqueles que aderem ao tratamento tiveram uma redução na mortalidade e na evolução para demência grave. Então hoje, embora ainda estejamos num cenário longe do que gostaríamos, estamos muito melhores do que nos anos 90, quando você não tinha opções de tratamento para o problema. Nós vivemos um cenário melhor, mas ainda distante do que buscamos e queremos para as pessoas com demência.