Colocado sobre uma mesa de laboratório, horas após a morte de seu dono, o cérebro de Aaron Hernandez tinha uma aparência saudável. Ele era, afinal, um jogador de futebol americano de apenas 27 anos de idade e menos de duas décadas de carreira.

Hernandez jogava no time New England Patriots cuja carreira acabou depois que ele foi condenado pelo assassinato de um amigo. Ele cometeu suicídio no último mês de abril.

Mas um exame póstumo detalhado de seu cérebro surpreendeu os especialistas. O órgão havia sido danificado por um caso de Encefalopatia Traumática Crônica (ETC) tão grave que parecia o de um atleta de 60 anos.

Os cientistas americanos consideram o caso mais grave já registrado para alguém da idade do ex-jogador.

“A ETC é uma doença degenerativa que tem como gatilho inicial o trauma repetitivo em qualquer parte da cabeça”, disse à BBC Brasil Paulo Caramelli, neurologista e professor da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), que estuda a doença.

A doença já foi conhecida como “demência pugilística”, por afetar principalmente boxeadores, que costumam ser atingidos por golpes na cabeça.

No entanto, no início dos anos 2000, o neuropatologista americano-nigeriano Bennet Omalu causou controvérsia ao publicar seus estudos sobre um ex-jogador de futebol americano que havia morrido da doença. O caso foi retratado no filme Um Homem entre Gigantes, de 2015.

A ETC causa transtornos de comportamento como agressividade, depressão e falta de controle emocional, além de distúrbios cognitivos, como perda de memória e demência.

Ela tem, no entanto, diferentes níveis de gravidade, que geralmente aumentam à medida em que a pessoa envelhece. Ou seja, quanto mais velho um atleta, por exemplo, mais grave costuma ser seu caso.

‘Cavernas’ no cérebro

O cérebro de Hernandez foi levado ao Hospital da Universidade de Boston em uma espécie de operação secreta, para evitar que o caso atraísse a atenção de fãs e curiosos.

De acordo com o jornal The New York Times, o órgão foi levado para um laboratório fora de Boston e ganhou um pseudônimo.

Só três pessoas da equipe da neuropatologista Ann McKee – que há anos estuda a doença em jogadores de futebol americanos – conheciam a identidade do dono do órgão.

Exame de cérebro de Aaron Hernandez
Segundo pesquisadores, o caso de ex-jogador condenado por assassinato é o mais grave já registrado em alguém de apenas 27 anos | Foto: Boston University

Ao fatiar o cérebro em pedaços de cerca de 1,3 centímetros, os pesquisadores perceberam as “cavernas” de tamanho incomum em meio ao órgão – que se expandiram na medida em que o tecido cerebral diminuía.

De acordo com Paulo Caramelli, o visual é incomum porque em uma pessoa de 27 anos, as dobras do cérebro preenchem praticamente todo o espaço do crânio.

A equipe de McKee também observou que o septo pelúcido, uma membrana que divide os dois lados do cérebro, estava perfurada – algo que costuma acontecer com pacientes de ETC por causa do trauma repetido na cabeça.

O principal sinal da doença, no entanto, só foi encontrado quando os pesquisadores colocaram o cérebro de Hernandez no microscópio – o acúmulo da proteína tau, que mata as células nervosas.

A proteína ocorre normalmente no cérebro e é uma espécie de “cimento” que dá estabilidade ao sistema de transporte de substâncias dentro da célula nervosa, segundo Caramelli.

“Em algumas doenças degenerativas, como o Alzheimer e a ETC, ela modifica sua estrutura e perde a função. Aí o neurônio não consegue funcionar e morre”, explica.

O processo faz com que as conexões entre as áreas cerebrais que processam determinadas funções, como as emoções e a memória, deixem de funcionar normalmente.

Aaron Hernandez
Jogador despontou na NFL, mas foi condenado pelo assassinato de um amigo aos 23 anos. Foto: Reuters

No caso de Hernandez, a proteína tau aparecia em todo o córtex frontal, a parte do cérebro que controla a tomada de decisões, os impulsos e a inibição. E se espalhava pela amídala, que regula emoções como medo e ansiedade, e por outras partes do cérebro como o hipocampo, estrutura considerada a principal sede da memória e parte do sistema límbico (responsável por comportamentos sociais).

Mecanismo desconhecido

O cérebro foi considerado no estágio 3 da doença, em uma escala de um a quatro. Em um estudo anterior da própria equipe de McKee, órgãos no estágio 3 geralmente pertenciam a ex-jogadores com, em média, 56 anos.

Em uma coletiva de imprensa, McKee afirmou que o caso de Hernandez era grave “de uma maneira como nunca vimos nos 468 cérebros que já examinamos, exceto em indivíduos muito mais velhos”.

Em julho de 2017, o New York Times publicou os resultados de um novo estudo da pesquisadora feito em 202 cérebros – 111 deles eram de ex-jogadores da NFL e destes, 110 tinham sinais de ETC.

A liga de futebol americano tem sido questionada sobre o assunto, mas não admitiu que o esporte seja responsável pelos danos à saúde dos atletas.

Os órgãos pertenciam a homens de 23 a 89 anos, que ocuparam todas as posições de um time de futebol americano.

Os pesquisadores também examinaram órgãos de ex-jogadores da liga de futebol canadense, de jogadores semi-profissionais, universitários e do ensino médio. Dos 202 cérebros estudados, 87% tinham sinais de ETC. Os jogadores do ensino médio tinham casos mais brandos, enquanto que os atletas universitários e profissionais apresentavam mais danos.

“Já não é discutível se existe um problema no futebol Americano. O problema existe”, disse McKee, na época, ao jornal americano.

Até agora, no entanto, a maior parte dos cérebros estudados foram doados pelas famílias dos jogadores porque já se suspeitava que eles pudessem ter a doença. Isso poderia gerar um viés nos resultados.

Falta ainda, de acordo com Caramelli, um estudo mais abrangente para determinar qual seria, realmente, a frequência da ETC nos atletas.

Ann McKee
Pesquisadora se dedica a estudar cérebros de atletas de futebol americano e hóquei no gelo em busca de sinais de doença causada por pancadas repetitivas | Foto: Boston University

Assim como Ann McKee nas poucas entrevistas que deu sobre o tema, o neurologista brasileiro menciona diversas vezes a palavra “fascínio” ao falar do cérebro de Hernandez.

Para ele, o fascínio despertado nos cientistas se deve ao fato de que o mecanismo pelo qual as pancadas repetitivas na cabeça levam a uma alteração química no cérebro ainda não é conhecido.

É possível ainda que traumas menos graves, que não causem perda de consciência, mas também ocorrem repetidamente, possam ter algum papel na doença. Por exemplo, os que sofrem os jogadores de futebol tradicional.

Em 2014, um estudo da USP mostrou que o ex-capitão da seleção brasileira de 1958, Hilderaldo Luís Bellini, sofria de ETC. Na Inglaterra, a doença também foi encontrada no cérebro de alguns jogadores.

“Aqui na UFMG estamos fazendo um estudo com jogadores de futebol brasileiros na ativa. Não esperamos encontrar ETC exatamente, mas queremos saber se há pelo menos alterações sutis no cérebro”, diz Caramelli.

“No caso do futebol tradicional, o impacto é bem menor do que no americano e no boxe, sem dúvida. E ainda não sabemos qual é o papel do organismo de cada indivíduo, que pode ser mais suscetível à doença.”

Outro desafio é o fato de que, até agora, a ETC só pode ser diagnosticada após a morte. Não se tem ideia, portanto, de como interpretar alterações de comportamento em jogadores e nem se, no caso de um diagnóstico, interromper a prática do esporte poderia de fato ajudar.

“Surgiu agora um exame em que você pode ver o acúmulo da proteína tau em uma pessoa viva. Está sendo testado para pacientes de Alzheimer, mas ainda não sabemos se serviria para ETC”, afirma.

Violência?

Os estudos existentes, segundo Caramelli, mostraram que a maioria dos ex-jogadores mais jovens que sofriam de ETC – com até 30 ou 40 anos – sofriam mais de depressão, ansiedade e agressividade.

Já os mais velhos eram afetados de maneira semelhante ao mal de Alzheimer, e tinham mais alterações cognitivas.

Cérebro de Aaron Hernandez
Ao contrário do que seria normal em uma pessoa de 27 anos, cérebro de Hernandez tinha cavidades largas e tecido atrofiado | Foto: Boston University

“Não há dúvidas nesse momento de que os mais jovens, em estágios iniciais da doença, têm mais alterações de comportamento”, afirma.

Para os pesquisadores, no entanto, isso ainda não indica com certeza que o avanço precoce da doença era a causa dos episódios violentos protagonizados por Hernandez em sua carreira meteórica na NFL.

Ele começou no esporte quando adolescente na Flórida e chegou a ganhar um título nacional com um time local em 2008, mas Hernandez foi rebaixado no ranking de jogadores por causa do envolvimento em uma briga de bar.

Ele foi contratado pelo New England Patriots, um dos times mais famosos do país, em 2013. Mas menos de um ano depois, um de seus amigos apareceu morto a tiros.

O ex-jogador foi condenado pelo assassinato e acusado por outras duas mortes ocorridas em 2012. Dias após ser inocentado no segundo caso, ele se enforcou com um lençol na prisão.

O caso se tornou emblemático da crescente preocupação dos americanos com a violência exibida por jogadores de futebol americano fora dos campos.

Em 2012, o jogador Jovan Belcher, que também tinha ETC, matou sua namorada a tiros e cometeu suicídio em seguida.

Os advogados de Hernandez anunciaram que processarão a NFL, pedindo compensação para a filha de 4 anos de idade de Aaron Hernandez pela perda de seu pai.

Dias depois, o vice-presidente de comunicações da NFL, Joe Lockhart, afirmou que a liga vai “contestar vigorosamente as alegações” do processo e que “qualquer tentativa de pintar Aaron Hernandez como vítima é equivocada”.

“A história pessoal dele era complexa, e não se presta a respostas simples. Precisamos lembrar que ele foi condenado por homicídio, e seu histórico de problemas de comportamento começou bem antes de jogar da NFL”, afirmou à imprensa.

“Há muitos pontos aqui. A ciência ainda não descobriu como conectá-los.”

Link: https://www.bbc.com/portuguese/geral-42332335